Raoul Vaneigem
Não existe prazer que não esteja em busca da sua coerência. A sua interrupção, a sua não satisfação provoca um distúrbio semelhante à estase de que fala Reich. Os mecanismos opressivos do poder mantém os seres humanos em um estado de crise permanente. O prazer e a angústia nascidos de uma ausência têm portanto essencialmente uma função social. O erotismo é o desenvolvimento das paixões que se tornam unitárias, um jogo sobre unidade e multiplicidade, sem o qual não existe coerência revolucionária (“O tédio é sempre contra-revolucionário” – Internationale Situationniste, nº 3).
Wilhelm Reich atribuiu a maioria dos comportamentos neuróticos aos distúrbios do orgasmo, àquilo que ele chama de “impotência orgástica”. Segundo ele, a angústia surge da incapacidade de ter um orgasmo completo, surge de uma descarga sexual que não consegue liquidar totalmente toda a excitação mobilizada pela atividade sexual preliminar (carícias, jogos eróticos, sedução...). A teoria reichiana considera que a energia acumulada e não gasta se torna flutuante e se transforma
Ora, o problema das tensões e da sua liquidação não se coloca apenas no plano da sexualidade, ele caracteriza todas as relações humanas. Mesmo que Reich o tenha pressentido, ele não mostrou de modo suficiente que a crise social atual é também uma crise de tipo orgástico. Se “a fonte de energia da neurose se encontra na disparidade entre a acumulação e a descarga de energia sexual”, parece-me que a fonte de energia das nossas neuroses se encontra também na disparidade entre a acumulação e a descarga de energia posta em ação nas relações humanas. O gozo total é ainda possível no momento do amor, mas assim que nos esforçamos em prolongar esse momento, em lhe dar uma extensão social, não se escapa àquilo a que Reich chama de “estase”. O mundo do deficitário e do incompleto é o mundo da crise permamente. Como seria então uma sociedade sem neurose? Seria uma festa permanente, com o prazer como único guia.
“Tudo é feminino naquilo que se ama”, escreveu
O erotismo é o prazer que procura sua própria coerência. É o movimento das paixões na direção da intercomunicação, da interdependência e da unidade. O problema é recriar na vida social as condições do gozo perfeito no momento do amor. Condições que permitam o jogo com a unidade e a multiplicidade, ou seja, a livre e transparente participação na busca da realização.
Freud define a finalidade de Eros como a unificação ou a busca da união. Mas, quando pretende que o medo de ser separado e expulso do grupo provém da angústia da castração, ele vê de modo invertido. É a angústia da castração que provém do medo de ser excluído, e não o inverso. Essa angústia aumenta à medida que o isolamento dos indivíduos na ilusão comunitária se torna cada vez mais difícil de ignorar.
Embora busque unificação, Eros é essencialmente narcisista, apaixonado por si mesmo. Deseja um universo para amar como ama a si próprio. Norman Brown (3) assinala esta contradição em Eros e Thanatos. Como é que uma orientação narcisista, pergunta ele, poderia conduzir à união com os seres no mundo? Ele responde: “A antinomia abstrata do Ego e do Outro no amor pode ser vencida se regressarmos à realidade concreta do prazer e à definição da sexualidade como essencialmente a atividade prazerosa do corpo, e se considerarmos o amor como a relação entre o ego e as fontes do prazer”. Mas seria ainda necessário acrescentar: a fonte do prazer está menos no corpo que em uma possibilidade de expansão no mundo. A realidade concreta do prazer deve-se à liberdade de unir-se a todos os seres que permitam que a pessoa se una consigo mesma. A realização do prazer passa pelo prazer da realização; o prazer da comunicação, pela comunicação do prazer; a participação no prazer, pelo prazer da participação. É nisso que o narcisismo voltado para o exterior, de que fala Brown, implica uma subversão total das estruturas sociais.
Quanto mais o prazer cresce em intensidade, mais reivindica a totalidade do mundo. É por isso que me agrada saudar como um slogan revolucionário a exortação de Breton: “Amantes, dêem um ao outro cada vez mais um prazer maior!”
A civilização ocidental é uma civilização do trabalho e, como diz Diógenes (4): “O amor é a ocupação dos preguiçosos”. Com o desaparecimento gradual do trabalho forçado, o amor é chamado a reconquistar o terreno perdido. E isso não deixa de trazer perigo para todas as formas de autoridade. Por ser unitário, o erotismo implica a liberdade da multiplicidade. Não existe melhor propaganda para a liberdade do que a serena liberdade de gozar. É por isso que o prazer é na maior parte do tempo confinado à clandestinidade, o amor, em um quarto, a criatividade, debaixo da escada da cultura, o álcool e a droga, à sombra das leis etc.
A moral da sobrevivência condenou a diversidade dos prazeres e sua unidade-na-multiplicidade em proveito da repetição. Se o prazer-angústia se satisfaz com o repetitivo, o verdadeiro prazer por sua vez só ocorre com a diversidade na unidade. O modelo mais simples é o casal axial. Os dois parceiros vivem as suas experiências numa transparência e numa liberdade tão completas quanto possível. Essa cumplicidade irradiante tem o encanto das relações incestuosas. A multiplicidade das experiências vividas em comum fundamenta entre os parceiros um laço de irmão e irmã. Os grandes amores têm sempre alguma coisa de incestuoso: um fato que sugere que o amor entre irmãos e irmãs é privilegiado a princípio, e deveria ser favorecido. Já é tempo desse velho e ridículo tabu ser quebrado, e um processo de “sororização” ser posto em andamento: ter uma esposa-irmã cujas amigas sejam minhas esposas e minhas irmãs.
No erotismo, a única perversão é a negação do prazer, é a falsificação do prazer-angústia. Que importa a fonte desde que a água corra? Como os chineses dizem: imóveis um no outro, o prazer nos arrasta.
Finalmente a busca do prazer é a melhor garantia do lúdico. Ele salvaguarda a participação autêntica, protegendo-a contra o sacrifício, a coação, a mentira. Os diferentes graus de intensidade do prazer definem o domínio da subjetividade sobre o mundo. Assim, o capricho é o jogo do desejo em estado nascente; o desejo, o jogo da paixão nascente. E o jogo da paixão encontra a coerência na poesia da revolução.
Isso quer dizer que a busca do prazer exclui o desprazer? Não exatamente, mas o desprazer ganha um novo significado. O prazer-angústia não é nem um prazer nem um desprazer, mas um modo de se coçar que irrita ainda mais. O que é então o desprazer autêntico? Um revés no jogo do desejo e da paixão: um desprazer positivo que chama com um grau correspondente de paixão um outro prazer a construir.
1. Parte 5 do capítulo XXIII, “A Tríade Unitária: Realização, Comunicação, Participação”, do livro A Arte de Viver Para as Novas Gerações, de Raoul Vaneigem.
2. Julien Offray de
3. Norman O. Brown foi um importante filósofo e pensador norte-americano muito influente no anos 1960 e 1970, por suas idéias libertárias sobre o prazer que, juntamente com as de Herbert Marcuse (com as quais, de certa forma, rivalizava), viriam a ser fundamentais para a contracultura. Autor de Vida contra a Morte e O Corpo e o Amor.
4. Filósofo cínico que viveu no século IV ª C. em Atenas e Corinto. (N.T)
3 comentários:
aee vei massa a iniciativa, moro en $alvador y to kerendo saber se vc tem outros links de sites/blogs/zines feito por baianos...
?
...
sensacional
botar esse blog no zine 5# do ao ataque
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